terça-feira, 1 de novembro de 2011

PSICOLOGIA DO TRABALHO E SAÚDE/DOENÇA DO TRABALHADOR (completo 22/06/2011)

UMA VISÃO EXISTENCIALISTA DA RELAÇÃO DA PSICOLOGIA DO TRABALHO COM A SAÚDE/DOENÇA DO TRABALHADOR, A PARTIR DO FILME
JERRY MAGUIRE: UMA GRANDE VIRADA
Francielle Morelli[1]
Ronaldo Antonio Verrillo[2]
 Sylvia Mara Pires de Freitas[3]


[1] Psicóloga. Discente do curso de Pós Graduação em Psicologia Fenomenológica Existencial da Universidade Paranaense-UNIPAR.
[2] Psicólogo. Discente do curso de Pós Graduação em Psicologia Fenomenológica Existencial da Universidade Paranaense-UNIPAR.
[3] Psicóloga. Mestre em Psicologia Social e da Personalidade (PUC/RS). Especialista em Psicologia do Trabalho pelo Centro Universitário Celso Lisboa (CEUCEL/RJ), Formação em Psicologia Clínica na abordagem existencialista (NPV/RJ). Bacharel em Psicologia pelo CEUCEL/RJ. Docente dos cursos de Psicologia da Universidade Paranaense (UNIPAR), Unidade Sede, Umuarama/Pr) e da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá/Pr. Coordenadora, docente e orientadora do curso de Especialização em Psicologia Fenomenológico-existencial da UNIPAR.



RESUMO: O tema Saúde do Trabalhador engloba todo um contexto de trabalho, relações de trabalho, relações sociais e relações familiares. Devemos considerar também, a existência do sistema capitalista que influencia na construção da subjetividade e objetividade humana, podendo refletir assim no adoecimento ou não do trabalhador. É preciso lembrar que a organização faz parte de uma sociedade capitalista a qual reproduz valores, em muitos casos, não coerentes com as necessidades e anseios dos trabalhadores, o que muitas vezes não é percebido pelos mesmos de forma reflexiva, podendo gerar em alguns casos o adoecimento do trabalhador, impossibilitando o mesmo transcender seu projeto de atuação profissional frente às dificuldades encontradas sejam elas valores, necessidades, anseios, estratégias de trabalho ou de relações profissionais. O presente artigo justifica-se pela reflexão sobre as possibilidades que o trabalhador pode vislumbrar frente ao mundo do trabalho ao perceber seu potencial e seu projeto de atuação profissional e a partir daí, lançar-se no mundo construindo sua história através de escolhas coerentes com seu projeto de atuação profissional. Objetivou-se com este capítulo, oferecer uma nova possibilidade de leitura do tema “Saúde do trabalhador” através da visão fenomenológica existencial sartriana. Utilizando-se da análise do filme “Jerry Maguire – A grande virada” (CAMERON CROWE, 1997), foi possível escrever este artigo, embasando-se em textos de origem existencial. Utilizou-se do método progressivo-regressivo satriano para compreensão das escolhas feitas pelo protagonista do filme, Jerry Maguire. A análise do filme mostrou que a personalidade do sujeito é tecida nas relações sociais, os quais orientam para definição do ser, da identidade, o que só é possível através das relações estabelecidas ao longo da vida, o qual algum destes fatos ao afetar a personalidade gera uma complicação psicológica que leva o sujeito a experienciar a contradição de ser, podendo levar a possível insegurança na realização do projeto de ser, ou ainda, a inviabilização do desejo de ser, gerando então o adoecimento.
Palavras-chave: Saúde do trabalhador. Existencialismo. Psicologia do Trabalho.

ABSTRACT: The theme Health of the Worker covers all a context of the work, relationships of the work, social relationships and kinships. We obligation to consider also, the existence of the capitalist system which it influences in the construction of the human subjective and objectivity, with your influence it can reveal like in the ill or not of the worker. We need to remember which the organization it does piece of the one capitalist society which reproduces exchanges, in many cases, they don’t consistent with the necessities and longings of the workers, the what often they weren’t perceiving at least of the reflexive form, it can engender in some cases the worker falling sick; He remains incapacitate of the overpass your project of the professional actuation front at the difficulties encounter, to be theirs: values, necessities, longings, strategies of the work or of the professional relationships. The present chapter justify itself for the reflection about the possibilities the worker can descry front at the world the work; the worker perceive his potential and his project of the professional actuation and from there, launch himself in the world building his history through of the his coherent choices with his project of the professional actuation. It intends itself with this chapter, to offer a new possibility of the reading of the theme “Health of the Worker” through of the vision Phenomenology Existential of the Sartre. It utilizes itself of the analysis of the movie “Jerry Maguire – The Journey is everything(CAMERON CROWE, 1997), it was possible to write this article, based in texts of the origin Existential. It utilizes itself of regressive - progressive method of the Sartre for comprehension of the choices feat for protagonist of the movie, Jerry Maguire. The analysis of the movie showed who The analysis of the movie showed who the personality of the guy is weaved in the socials relationship , that which they orient for definition of the creature (existence), of the identity, which alone it is possible through of the relationships established along of the life, that which some these facts to affect the personality it generates a “misfortune”, one “psychology’s complication” who it carries the guy to feel experience deeply the “contradiction of the existence”, it can carry the possible insecurity in the realization of the project of the existence, or else, the not success of the wish of the existence, it can generates a falling sick.
Key Words: Health of the Worker, Existentialism, Psychology of the Work.

INTRODUÇÃO
Falar sobre saúde do trabalhador é reportamo-nos à relação homem/mundo, através da qual o homem, ao criar projetos não pode desconsiderar os limites e possibilidades do mundo posto, e a partir de uma concepção dialética buscar transcender os paradoxos desses contextos ontológicos distintos, porém interdependentes (homem/mundo).
De um lado temos o homem que, na interiorização das coisas que estão no mundo, as significa e, ao agir sobre o mundo, busca imprimir nele sua subjetividade, na tentativa de humanizá-lo. No entanto, temos uma sociedade construída na base do capital, a qual desagregou do homem o seu valor para agregá-lo ao produto e assim, devolver o valor (do homem) a ele próprio, através desse primeiro (produto). Resumindo: o sistema produtivo, inclusive o lucrativo, tirou o valor do homem para dar-lhe de volta através da coisa, do objeto.
Ao trabalho foi agregado o valor do capital, em forma de remuneração e aquisição de bens. A satisfação através dessa ação (o Fazer) passa a estar intimamente relacionada ao quanto se ganha e ao que se tem (o Ter); não focando diretamente na práxis da relação homem/trabalho, mas nas conquistas, nas metas, no produto final.
Trabalhar pela sobrevivência, pela satisfação e realização pessoal torna-se um projeto difícil ao tentar conjugá-lo às necessidades e desejos das classes hegemônicas que comandam as empresas, organizações e instituições direcionadas às relações de trabalho. De um lado temos os projetos do trabalhador e de outro os dessas classes. Como lidar com os paradoxos que podem advir dessa relação, sem que se percam de vista a saúde física e mental do trabalhador e por outro lado, a produtividade e o lucro? Sugerem-se dois lados que mostram certa dificuldade de comunhão, mas que se interdependem. Tal conflito leva muitos profissionais da saúde, inclusive os Psicólogos, a se debruçarem em estudos sobre o assunto, a fim de tentarem encontrar saídas que não firam ambas as partes.
Considerando que a Psicologia é uma ciência com raízes marcadas pela Filosofia e Medicina, regulamentada como ciência no Brasil no ano de 1962, com estudos desenvolvidos durante sua trajetória em várias áreas como a clínica, o desporto, a escolar, o social, o trânsito, a hospitalar e outras tantas que a Psicologia pode transitar, e enriquecida por diversas teorias; muitas foram e são as contribuições para o desenvolvimento e aprimoramento desta ciência, inclusive para com a Psicologia no contexto do trabalho.
A partir de 1980, no Brasil, a Psicologia, antes Industrial e Organizacional, volta-se para as questões relacionadas ao campo da saúde do trabalhador. Sendo chamada ao compromisso social e ético, a Psicologia do Trabalho viu-se obrigada a voltar seu foco à uma leitura mais crítica da situação de trabalho, considerando não só os projetos das classes dominantes, mas também os dos trabalhadores, os quais, quando interditados, geram sofrimento a este último.
A não transcendência das resistências que impedem a realização do projeto de Ser trabalhador pode se tornar uma situação de risco, promotora de doenças físicas e mentais. É sobre esta condição que refletiremos neste artigo. A partir do filme Jerry Maguire: a grande virada (CAMERON CROWE, 1997) faremos uma interlocução entre a Psicologia do Trabalho e a relação saúde/doença mental do trabalhador, fundamentando-nos no existencialismo sartreano.

1 JERRY MAGUIRE: UM TRABALHADOR NA LUTA PELO SEU PROJETO DE SER
Jerry Maguire: a grande virada (1997) nos remete a história de um jovem bonito, sedutor e empenhado na carreira de representação/agenciamento de grandes astros do esporte. Sua vida é dedicada totalmente ao seu trabalho, porém, ironicamente, não sentia seu projeto de valorização e respeito aos seus clientes reconhecido pelos dirigentes da empresa que trabalhava, uma vez que para estes, o foco central deveria estar no lucro.
Diante este conflito, Jerry vivencia a angústia de ter que se abster do projeto que o orientou no início de suas atividades laborais para ter que se adequar aos valores de um sistema que reverencia a produção, o consumo e o lucro, dentre outros sobrepostos ao trabalhador, caso desejasse sobreviver neste nicho de mercado.
O desejo de Ser ocorre através do Fazer e do Ter. Todas representam ações de possessão, que objetivam aliviar o homem da angústia provocada pela sua condição de negatividade. Tal como coloca Sartre (1997): “A realidade humana é puro empenho para fazer-se Deus, sem que tal esforço tenha qualquer dado, sem que nada haja a esforçar-se assim. O desejo exprime este empenho” (p. 704). No entanto, os resultados das práxis definirão a cultura, o sistema econômico, a moral, a ética, dentre outras questões que por sua vez caracterizarão a condição do trabalhador. O coletivo tomará essas teses como balizadoras do reconhecimento social.
Vemos hoje valores direcionados às coisas que sobrepõem ao trabalhador, ou seja, à sua humanidade. Seus sentimentos, projetos, limites e possibilidades, enfim sua dignidade é preterida em prol do lucro. No filme, Jerry, o protagonista, para alcançar o sucesso, deveria macular a ética relacional que fundamentava suas relações de trabalho até então.
Podemos observar aqui, uma vivência contraditória entre o poder colocar em prática os projetos fundamentados numa moral e ética que colocam o homem como figura e o capital como fundo e a necessidade de inverter estes valores para se ter um lugar no mercado e obter sucesso. Diante tal contradição, Sartre (1997) nos coloca que para o homem realizar seus projetos, sobrevivendo em comunidade, é preciso que abra mão de sua consciência isolada para vivenciar a experiência de uma consciência coletiva, submetendo-se às regras que em algum momento anterior foram criadas para manter-se na luta contra o prático-inerte, ou seja, para o homem sobreviver no mercado é preciso que abra mão de alguns de seus projetos que orientam seu desejo de ser, para adequar-se aos padrões instituídos pelas relações capitalistas, vivenciando então a reciprocidade e a inércia.
            Diante tal conflito, Jerry, em suas reflexões sobre sua existência, relembra o quanto a exigência de ser o melhor é recorrente em sua vida, pois desde muito cedo ouvia falar quem seriam os melhores jogadores, os melhores profissionais, os que valeriam milhões e os que não teriam sucesso e quais seriam os caminhos a serem trilhados. E para isso, era necessário ignorar algumas situações, como o que era certo e errado; o que era ético e não ético e, principalmente, ignorar o respeito aos limites humano. Era preciso abandonar quaisquer possibilidades de ser um profissional ético em nome do ganho, em nome das exigências do mercado. Então, além de refletir sobre sua existência, Jerry toma consciência ao compreender no que havia se tornado, um ganancioso de terno, o que ficou ainda mais claro ao ser questionado pelo garoto Jessé Remo em relação ao pai Steve Remo, quanto ao momento de Jerry fazê-lo parar de jogar, ao ver o pai pela 4° vez machucado, após mais um jogo que o levou a um leito de hospital, e Jerry de maneira descontraída diz que seria preciso 5 Super Trooper VR Warriors para fazê-lo parar, provocando então a ira do garoto que acabara por responder a Jerry através de um gesto obsceno demonstrando não concordar com a postura desmedida e desrespeitosa de Jerry deste.
Segundo Sartre (1997), a história de vida do sujeito dá dicas de quem é o ser que se apresenta, haja vista que, ao conhecer sua história, compreendemos suas escolhas através de suas ações e os nexos entre elas nos fala sobre seu projeto de ser.
Em conflito, odiando suas ações que comungam com valores capitalistas, Jerry decide realizar um projeto embasado no que acredita. Através desse projeto, o protagonista assume sua crença sobre a necessidade de o agente atender menos clientes tendo como foco a qualidade e humanização do atendimento. A objetivação de seu projeto através da proposta apresentada à empresa o faz apropriar-se da maneira como sempre quis ser diante sua carreira, e que havia esquecido, ao optar por condicionar-se pelo sistema vigente.
Podemos analisar este movimento de Jerry, através do método progressivo-regressivo colocado por Sartre (1997), o qual segundo este autor, a descrição e compreensão da totalidade do ser permite conhecer este que se apresenta, facilitando ao se regredir à essência do individuo, localizando-o em um grupo, cultura ou sociedade o qual sua história foi construída, permitindo a ele que realize um movimento progressivo, lançando-se na reflexão, impulsionado-o a um movimento histórico. Maheirie e Pretto (2007) complementam ao dizer que a compreensão objetivada provoca a práxis, transformando o objeto e sujeito, situado em uma condição subjetiva e objetiva do vir a ser. Maheirie (1994, apud Maheirie e Pretto, 2007) prossegue dizendo que:

a compreensão crítica por sua vez, implica vislumbrar outras possibilidades diferentes daquelas escolhidas pelo sujeito em sua história, bem como a elucidação do caminho que percorreu, instrumentos de reflexão ou de alienação que lançou mão e que caracterizaram seu movimento vivido (p. 460).

Jerry então, diante do qual chamou de crise de nervos ou insight, a qual chamaremos de crise existencial, revê seu projeto de ser no mundo, diante a contradição do modo como sempre quis ser e como deveria ser. Recorda os prazeres do trabalho quando atuava como agenciador de forma respeitosa, atenciosa e amorosa, ou melhor, de forma ética, o qual era possível perceber o resultado de seus esforços através do som dos estádios quando seus jogadores saiam-se bem, pois os mesmos percebiam-se como ser de possibilidades, amados e respeitados, numa reciprocidade positiva, motivos estes que o fez migrar para a cidade grande levando a essência do respeito, amor e atenção no projeto de atuação com seus clientes. Lembrou-se da forma como deveria promover a saúde e preveni-los da doença, da grande quantidade de clientes que havia esquecido, e esquecido também do que realmente era importante, do que aprendera com o 1° agente esportivo Dicky Fox: A chave deste ramo são os relacionamentos pessoais. Jerry então escreve seu projeto lançando-se num futuro desconhecido, porém coerente com seu desejo de ser.
Assumir seu projeto perante seus colegas de trabalho foi um grande desafio o qual encarou com muito medo, angústia e ansiedade por não saber as consequências que poderia trazer sua escolha por um projeto inovador, diferente do que estavam todos acostumados. A grande angústia da liberdade advém na maioria das vezes por não sabermos as consequências de nossas escolhas. Antecipamos um futuro que só a nós pertence, por este, no ato da escolha, ser intencionado pela imaginação. Não temos como perceber o futuro, somente imaginá-lo.
Sartre (1997) coloca que há duas maneiras da nossa consciência intencionar o mundo: a percepção e a imaginação. Segundo ele, a imaginação é a consciência de nada, sendo algo irreal, é o nada de alguma coisa real, existindo sobre o fundo de mundo real, ou seja, a consciência é ativa, criando o que ela desejar. Já a percepção é a captação de um mundo real, existindo sobre o fundo de mundo real, é a consciência de alguma coisa existente, onde ele é captado quando de forma imprevisível se apresentar à consciência. Através da percepção, a consciência é capaz de rever o que é apresentado a ela e de forma lenta cria diversos saberes por ser algo desconhecido a sua criação, ou seja, não foi algo criado pela própria consciência, o que não ocorre com a imaginação, pois a consciência nada capta, pois já conhece o objeto imaginante.
Após o risco em apresentar à empresa que trabalhava um projeto fundamentado em suas crenças humanizadoras, Jerry depara-se com a resposta ao mesmo: o abandono daqueles que o estimavam, haja vista que seu projeto foi de encontro com as normas que contradizem a valorização do humano em detrimento ao lucro. Ao lançar sua sorte e buscar reescrever sua história, Jerry vivencia sentimentos contraditórios diante os olhares dos outros que atuam como seus juízes, condenando-o pela sua escolha: a negativa do chefe ao seu projeto, retirando-lhe seus agenciados, a opressão velada de seus colegas exercida pelas falsas atitudes de apoio, as piadas que nelas embutiam a agressividade, as traições pelos contratos antes assinados, mas depois não acordados, mesmo que em atitudes encobertas.
Neste momento percebemos a interiorização de um coletivo, através do papel que cada um no grupo de trabalho desempenha (práxis individual): o de um terceiro mediador unificando cada um em um todo objetivo, dizendo a cada um do grupo quem eles deverão ser, direcionando a uma práxis comum. “Quando participo de uma ação comum, o Outro, enquanto terceiro mediador, unifica-me aos demais. Apareço ao terceiro mediador como se estivesse no interior de um ´todo` objetivo” [grifo do autor] (Perdigão, 1995, p 215). Com isso, cada colega de trabalho de Jerry representa um terceiro que medeia os demais, ao policiarem cada ato individual entre si. Jerry então, não apresentando uma ação comum ao grupo, é colocado fora deste, excluído por exercer sua liberdade de escolha.
A necessidade de transcendência, de usufruir de sua liberdade, de realizar possibilidades diferentes das instituídas, gera uma ameaça ao grupo instituído e instituinte das normas as quais Jerry mesmo ajudou a criar na constituição da empresa.

A desintegração em curso pode levar os membros a recair na passividade e na alteridade e fazer desaparecer o interesse comum, impondo, ao contrário, os antagonismos e a impotência serial [...]. Minha consciência é livre projeto, meu futuro é imprevisível, mas o juramento exige que esse futuro seja previsível: ao prestar juramento, coloco no futuro a impossibilidade de certas condutas, suprimo certos possíveis (Perdigão, 1995, p. 222; 226).

Descumprindo o juramento do grupo, Jerry tornou-se um terceiro excluído, uma ameaça à dissonância do grupo, reafirmando assim o juramento contra a dissolução.
Como dissemos, estar diante da verdade alheia e de suas verdades, coloca Jerry em situação paradoxal, mas que também o proporciona reflexões. Entre o eu-real e o eu-idealizado parecia existir um grande hiato.
Diante tais reações, era de se esperar a sua demissão. Esta veio da forma como jamais imaginou, em uma cafeteria onde havia várias pessoas felizes e sorridentes. Espelhando seu passado, a maneira superficial e astuciosa como agia com seus negócios.
Sozinho e autônomo, excluído do sistema de maneira cruel, ferido pelo não reconhecimento de sua alteridade e liberdade, parte para manter seus clientes e arrebatar os da companhia onde trabalhava. No entanto, para conquistar tal projeto, retoma velhos comportamentos cuja ética que os fundamentava não inseria a alteridade e a reciprocidade positiva. O uso do outro para conquistar seus próprios fins era a meta principal, até para sua sobrevivência. Luta com as próprias armas que o fez ficar fora do grupo.
Contudo, Jerry percebe que seus clientes também têm projetos e que teria de criar bons motivos para que fizesse com que desistissem dos mesmos, pois tivera a experiência com seus colegas de trabalho quando, ao deixar a empresa que ajudou a construir, somente uma colega aceitou o convite para acompanhá-lo.
Como o mercado é ágil e as consequências das ações são rápidas, Jerry vê-se tendo que arcar com os resultados de seu projeto, bem como as contradições de suas ações, um destes fatos é o fim do noivado e a perda de um de seus clientes mais importantes.
Diante um novo fracasso, Jerry reflete novamente sobre seus princípios. Sem estar imune a angústia e dúvidas quanto ao futuro, decorrentes de tais reflexões, que colocam de um lado a tese de ter que ser no mundo a moda do capital e de outro a antítese de poder realizar autenticamente seus projetos em prol da preservação da dignidade humana, sintetiza escolhendo ações que possa arcar com suas consequências. Assim, mostra-se um homem situado no mundo.
Em consonância com o projeto de um de seus agenciados (Rod Tidwell), em ser um atleta reconhecido, e em conversas com este que abordaram temas referentes à família, auto valorização, respeito próprio e ao outro, amor para com as pessoas próximas e reconhecimento profissional através de uma boa remuneração, Jerry vislumbra a possibilidade de promover Rod, apoiando-se em seus valores humanísticos.
O protagonista do filme vivencia ser um para-si-para-outro, reconhecendo a humanidade que há no outro, percebendo que aquele jogador medíocre que exigia regalias e que tinha uma mulher autoritária, era um grande astro do futebol americano, amado por seus familiares e que intencionava ser reconhecido e respeitado pela sociedade, sendo que para isto, precisaria rever ações e intenções, entre elas a humildade e escuta para atingir o sucesso, o qual Jerry poderia auxiliar nesse processo, porém para isto era preciso também que Jerry cedesse, revendo suas formas de ser no mundo, o que auxiliaria no redirecionamento dos caminhos a serem traçados alcançando objetivos de forma ética.
Gasparet (2009) explica que a ética existe onde estão outras pessoas, onde é assumida a responsabilidade e solidariedade para com os semelhantes, levando à atitude de reflexão e escolhas a fim de evitar o aniquilamento, desumanização, ódio, destruição, domínio e crueldade.


As pessoas não podem ser tratadas como coisas. Os valores éticos se oferecem, portanto, como expressão e garantia da condição de sujeitos, proibindo moralmente que se transforme o ser humano em coisa usada e manipulada por outros [...]. Vai sobreviver melhor quanto mais tiver claro quais são seus princípios e valores. Quando se perde os princípios e valores para decidir, julgar e analisar toma-se muitos caminhos perversos (GASPARET, 2009, p. 192; 194).

A relação entre Jerry e Rod é permeada por questionamentos entre ambos sobre os valores que fundamentam suas atitudes cotidianas, inclusive a profissional, o que corrobora para o amadurecimento da relação e para a iluminação do foco dos objetivos a serem alcançados. Concluem que é preciso agir sem deixarem-se levar pelo que os outros pensam dizem ou fazem, pois o reconhecimento e lucros financeiros são consequências de muita luta, dedicação e suor, mesmo havendo alguns arranhões.
No entanto, mesmo compreendendo a necessidade de ter amor pelo que faz, não conseguiu perceber resultados em sua vida pessoal e profissional. Vê seu casamento se desfazendo e seu projeto profissional não alcançando os objetivos esperados. Reflete que algo não estava certo. Neste momento, Jerry decide por não desistir, continuando a acreditar em seus projetos de vida pessoal e profissional, lançando-se na transcendência, percebendo a incoerência e má-fé em suas ações, a superficialidade na expressão de seus sentimentos compreendidos através das escolhas realizadas, contradizendo-se na condução de sua vida, de sua carreira, levando a perda e credibilidade em relação ao que havia conquistado como a esposa Dorothy, o enteado Ray e o trabalho. Lembra-se da fala de Dicky Fox sobre a relação do amor pelo que faz e a sabedoria: Se isto está vazio... isto não importa. [...] Abra os braços. Vejamos o que tem ai. Jerry reflete sobre suas escolhas, ou melhor, vive a angústia sobre sua real essência, revendo assim, sua maneira de ser no mundo, agindo da forma como sempre desejou agir, da maneira como sempre acreditou, através do respeito e amor pelo que faz.

Em meio a tantas crises existenciais, acaba-se por esquecer uma das maiores virtudes: o amor. Vive-se em meio a uma crise de sentimentos e de afeições que leva as pessoas a perderem o carinho, a sensibilidade e por consequência o significado da vida. Quando isso acontece, elas adoecem e passam a achar normais as cotidianas atitudes de perversidade [...]. Quando se coloca o homem perante uma alternativa moral, ou ele assume a liberdade e se realiza na angústia sua condição de ser responsável, ou nega a liberdade e procura refúgio na má-fé, esta entendida como uma forma de enganar-se a si mesmo e a outros (GASPARET, 2009, p. 188; 190).

Ao assumir sua real escolha, Jerry consegue transmitir a Rod o quanto realmente este era importante em sua vida, era tudo o que tinha e acreditava, o que permitiu a Rod perceber-se como um ser de liberdade, responsável pela construção de sua história. Rod vence o jogo, trazendo satisfação e alegria o qual contagiou a todos. É neste momento que Jerry compreende finalmente o quanto é importante acreditar no que se busca, traçar metas, refazer projetos, mesmo que para isto tenha que enfrentar desafios, logo arriscar.
O filme então, nos mostra que Jerry se aproxima da essência da vida, passando a experienciar os prazeres das relações, deixando de transformar o outro em seu inferno, e valorizando as coisas simples que antes não tinham tanto significado.

2 A PSICOLOGIA DO TRABALHO DIANTE A PROMOÇÃO DA SAÚDE MENTAL DO TRABALHADOR
Para entendermos o que vem a ser promoção da saúde mental do trabalhador, localizaremos antes a Psicologia na sua história, mostrando brevemente as contribuições que a mesma lançou para a compreensão do processo de adoecimento do trabalhador.
No final do séc. XIX com o desenvolvimento do taylorismo criado pelo Engenheiro Frederick Winslow Taylor, as atividades voltadas ao ambiente de trabalho e a este próprio, buscavam adequar o homem a sua função através da hierarquia de processos e cargos tendo como fim corrigir os problemas causados pelos artesões que, até então controlavam o processo do trabalho.
Com este projeto surge, na década de 1930, a primeira fase/face da Psicologia no contexto do trabalho, conhecida como Psicologia industrial ou Psicologia da indústria, corroborando com o projeto de adaptação do homem as exigências do mercado fazendo com que este atendesse as exigências e necessidades das empresas. Diante disto, foram desenvolvidas atividades de recrutamento, seleção, ergonomia, orientação vocacional e profissional baseadas em testes, análise e descrição de cargos e avaliação de desempenho, instrumentos coerentes com o projeto adaptativo do trabalhador.
Neste período também e com o mesmo objetivo de destituir do trabalhador a sua liberdade de escolha sobre os meios e modos de produção, mas com motivação para o trabalho, foram desenvolvidos estudos sobre relacionamentos interpessoais, motivação, comunicação, dentre outros, os quais foram reconhecidos como aqueles desenvolvidos pela Escola das Relações Humanas, tendo como precursor Elton Mayo.
Com o intento de destituir do homem sua liberdade que ameaçava o lucro, grande parte dos trabalhadores que se encontravam na linha de produção, tornou-se esvaziado de sentido de trabalho. Não mais podendo decidir sobre como exteriorizar seu interior no processo produtivo, interiorizavam um exterior impregnado de regras e normas que limitavam sua existência. Sua liberdade era aceita enquanto produtor e consumidor, adquirindo bens gerados pelo trabalho.
Em meados dos anos de 1940-1950, estudos produzidos pela Teoria da Administração Cientifica, Teoria das Relações Humanas, Teoria do Desenvolvimento e estudos que buscavam compreender os efeitos da estrutura organizacional sobre a motivação humana, as formas de satisfação e eficiência do trabalho e a reorganização das formas de trabalho nos países após a 2° Guerra Mundial fez, segundo Sampaio (1998), com que a primeira fase/face da Psicologia no contexto do trabalho ampliasse suas técnicas, não apenas capacitando o homem para o trabalho, mas desenvolvendo recursos humanos, contribuindo assim, à transição para a Psicologia Organizacional, conhecida como a segunda fase/face da Psicologia no contexto do Trabalho. Esta amplia sua visão para as relações da empresa com o mercado. Não mais centrando o olhar somente para o homem e a função, mas para as relações endógenas e exógenas a organização, continua seu intento no controle da liberdade do trabalhador, a fim de adaptá-lo e a organização aos conflitos gerados pelas mudanças no mercado e no mundo.
Próximo ao ano de 1980, surge a Psicologia do Trabalho conhecida como terceira fase/face da Psicologia no contexto do trabalho, influenciada pela crítica dos psicólogos sociais que desejavam uma nova percepção frente à postura profissional do psicólogo nesta área, até então submissa a classe dominante e manutenção do status quo do sistema capitalista. Neste período, além da criação da ABRAPSO (Associação Brasileira de Psicologia Social) e do Partido dos Trabalhadores (PT), surge o movimento pela Reforma Sanitária que direcionou os estudos para a saúde do trabalhador.
Freitas (2002; 2005) nos coloca que neste período foram desenvolvidos estudos direcionados a psicopatologia, psicodinâmica do trabalho, subjetividade e trabalho, através dos escritos de diversos autores que ampliaram o leque de visão, percebendo a importância sobre a compreensão e percepção do homem e das relações de trabalho, abrindo espaço no campo de atuação e maturidade da profissão.
Complementando esta visão, Sampaio (1998) relata que a preocupação com a produtividade foi substituída pela compreensão do homem que trabalha, fazendo com que fossem discutido temas que anteriormente não eram enfatizados, gerando assim, uma política de ações de grupos sociais dentro das organizações, considerando informações referentes a poder e conflitos, buscando a compreensão do trabalho humano antes de qualquer coisa na organização.
Diante deste esboço, Freitas (2002; 2005) nos mostra que na primeira e segunda fases/faces da Psicologia no contexto do trabalho, buscou-se manter fielmente aos desejos e interesses das classes dominantes de cada época, o qual só foi possível transcender esta percepção frente às exigências por parte da própria Psicologia na busca de ampliação da visão de homem, o que ocorreu na terceira fase/face da Psicologia no contexto do trabalho.
            Pelas maneiras da gestão do trabalho até então, de coibir a liberdade do trabalhador, exigindo do mesmo a produção em prol do lucro, vimos o aumento gradativo do adoecimento desta classe.
Para melhor compreensão, focando no que vem a ser a saúde mental, ou melhor, o que vem a ser perturbações psicológicas, embasamo-nos nos escritos de Schneider (2002) que nos revela que para conhecer as diferentes patologias, o adoecimento, é preciso primeiramente compreender o que é o adoecer, e quem é o homem que adoece.
Segundo Sartre citado por Schneider (2002), é preciso ter claro primeiramente o que é sujeito e subjetividade, consciência e ego (personalidade). A consciência é intencionalidade, pura transcendência, é o nada que se insere no mundo, construindo-se, sendo ela dimensão da subjetividade. O ego ou personalidade é a unificação do corpo/consciência direcionando para um projeto (subjetividade objetivada), é o psicofísico, sendo assim, quem adoece ou vivencia complicações não é a consciência, mas sim a personalidade, é o sujeito em processo de constante transformação, que se totaliza, destotaliza e retotaliza. Conforme a autora (2002, p. 289) “a patologia é uma perturbação psicofísica, que acontece enquanto movimento do sujeito no mundo, resultante da sua história de relações”.
Ratificando o colocado anteriormente, Tenório (2003), embasado nos escritos de Romero e Sartre, enfatiza que a consciência ao ser direcionada para o mundo, mostra a compreensão que o homem tem a respeito dele, significando esse mundo através de suas vivências e de seu desenvolvimento humano, que perpassa por momentos de equilíbrio e desequilíbrio, organização e desorganização, vivenciando um movimento em espiral, ou seja, construindo-se e re-construindo-se em direção ao futuro.
Este movimento, em espiral para Sartre, ocorre através da subjetividade, pelo qual o homem é capaz de permitir que seja colocado no mundo seus projetos, tornando-os concreto, sendo assim, a cada instante, os projetos que idealizar na sua consciência irá aparecer de diferentes maneiras, em vários momentos de sua vida, sendo retomado, reconfigurado, estando sempre presente, passando sempre pelos mesmos pontos, porém sempre em níveis diferentes de integração e complexidade (SCHNEIDER, 2002).
Concluindo o raciocínio acima, a mesma autora (2002), relata que, para Sartre, é preciso considerar que este poder de re-significar através do movimento em espiral, em diversas situações, irá escapar ao homem, pois outros homens também fazem história, objetivando este homem, alienando-o, o qual poderá aparecer ao homem como uma força estranha, permitindo que não se reconheça, não percebendo o sentido de sua ação no resultado de suas escolhas. No entanto, mesmo não se percebendo nas escolhas realizadas ou mesmo estando de forma alienada fará sua história.
Diante esta exposição, é possível compreender as possibilidades que o sujeito adoecido tem de retomar a sua vida através da consciência que continua intacta, ou seja, através do voltar-se para-si, olhando-se como um para-si, é possível que a personalidade perturbada se recupere através da consciência reflexiva, transcendendo, fazendo algo com aquilo que fizeram dele, lançando-se em seu projeto de ser. Complementando, Schneider (2002) relata que passamos por diversos problemas no dia-a-dia, que não necessariamente perturbam a personalidade do sujeito, porém ao interferirem ou perturbarem a personalidade pode provocar complicações psicológicas enredando a personalidade.
Jerry perpassa por momentos de equilíbrio e desequilíbrio, organização e desorganização, construção e re-construção, porém a todo instante, nega sua humanidade e a das pessoas a sua volta, agindo com elas e consigo mesmo de maneira a desconsiderar o projeto de ser de cada um e de si mesmo, ou melhor, desconsidera os projetos que há em cada um destes, passando a imagem de um ser superior, estando acima de qualquer dúvida ou questionamento, porém alienado a sua própria liberdade, vivendo assim uma mediação negativa, o qual inviabiliza o desejo de ser de seu ser e dos outros.
Para Perdigão (1995), quando o homem assume uma reciprocidade negativa, adota uma postura em que utiliza o outro para realizar seus fins, “e reage fazendo do Outro um meio para o seu próprio fim” (p. 190). No entanto, o homem ao adotar uma reciprocidade positiva, é capaz de manter seus fins sem utilizar o outro como objeto, podendo até mesmo assumir uma postura onde em comunhão com o outro podem visar um fim único, onde ambos ganham.
Compreendendo o que vem a ser mediações negativas, percebemos que diante esta postura, Jerry ao olhar apenas para seus interesses age de forma negativa e desumana. Encontra dificuldades de compreender seu ser, ou melhor, de entrar em contato com sua liberdade angustiante, com suas dificuldades, com sua humanidade desrespeitando a humanidade do outro, o que é notoriamente percebida quando Rod o questiona sobre seu casamento, sua relação de marido e mulher, e Jerry responde que casou-se devido a lealdade e não por amor, o que faz Rod perceber a repetição do mesmo comportamento com ele ao decidir-se por ajudá-lo na carreira esportiva apenas por interesses pessoais, pois era seu único ganha pão, sendo contraditório a fala de atenção pessoal para com o cliente, deixando claro que se não era capaz de dar atenção verdadeiramente para sua família, considerando seus projetos e interesses, não teria condições de dar atenção a seu cliente respeitando-o e considerando seus projetos e interesses. Fato confirmado quando Jerry é questionado por Dorothy quanto ao amor que sentia por ela e ele, ao ser interrompido pelo garoto Ray, filho de Dorothy não a responde, demonstrando que não sentia amor verdadeiro pela mesma, o que acabou levando a separação do casal.
Então compreende que precisa respeitar a humanidade que há no outro, para assim ver seu projeto viabilizado, Jerry vivencia a angustia de conhecer a si e as conseqüências de suas escolhas, angústia esta, inevitável, colocando seu ser em questionamento, não reconhecendo sua história, tendo que experimentar além da reflexão de seu pensamento, as emoções de seu corpo, seu psicofísico, que o permite sentir o significado que dá ao mundo, sem que ninguém o signifique para ele ou o interprete.
Segundo Sartre citado por Santana (2005; 2006), a angústia corresponde a algo diante de si mesmo, é a consciência de sua liberdade, colocando seu ser em questão, o que diferencia do medo, que vem a ser algo externo, fora do ser humano. Sendo assim, a cada momento a consciência de Jerry o faz de forma obrigatória refletir sobre suas escolhas no mundo, sobre as consequências que advêm de cada escolha, sobre a responsabilidade das mesmas, fazendo com que entre em conflito com seus pensamentos, ações e intenções, com seu projeto de ser, percebendo-se como ser livre para escolher.
Sartre (apud Schneider, 2002) coloca que o homem através do uso da imaginação tem a possibilidade de criar sua história, nadificando a situação dada, transcendendo sua liberdade, no entanto, quando o homem ao usar sua capacidade criativa, sua imaginação ficar prisioneiro a ela, aparecerá então a patologia

O imaginário é um aspecto central do psiquismo humano, pois a função irrealizante permite ao sujeito transcender uma dada situação em direção a um fim e, por isso mesmo, permite transcender a realidade, fugir do mundo, o que, por outro lado, pode ser “transformador” e, por outro, “alienador”. Tudo depende da relação do sujeito com o mundo, da sua situação existencial, da estruturação de sua personalidade, enfim, de seu projeto fundamental e da função que a vida imaginária possa ter nesse conjunto (SCHNEIDER, 2002, p. 254).

Sendo assim, é possível compreender que a consciência intacta permite a racionalização dos fatos, levando ao que a autora (2002) chama de inteligibilidade.
A liberdade está diretamente relacionada ao desejo de escolher ser, desta ou daquela determinada maneira, construindo assim a si próprio enquanto homem. Jerry só se tornará um grande agente esportivo e bom marido, quando compreender a necessidade de perceber quais situações o afeta, bem como lidar com o prático inerte existente, conhecendo seu ser, sua capacidade de imaginar e criar, ousando sua angústia e liberdade, evitando assim a possibilidade de adoecer, o que segundo Romero (2001), o “sentir-se preso, sufocado por conflitos, impulsos e afetos, implica um sentimento de perda da liberdade pessoal (p. 30)”, gerando o adoecimento.



Tenório relata que a

psicopatologia vai se manifestando através de uma vivência de sofrimento onde a pessoa se sente vítima e presa a um destino sombrio e a uma existência destruída de realizações gratificantes e prazerosas. Sem liberdade de escolha, a pessoa vive a sensação de estar encurralada pelas circunstancias da vida. Sentindo-se impotente para modificá-las submetendo-se a elas, num sacrifício alienante e inevitável [...]. Neste momento de sofrimento, a pessoa perde o contato com as possibilidades existenciais no campo organismo/meio, percebendo a si, mesmo e ao outro de forma distorcida (2003, p. 36; 37).


Santana (2005; 2006) pontua que, segundo Sartre, o homem ao tentar fugir de sua liberdade e angústia, mascara a verdade de forma a agradá-lo, caindo assim na má-fé, justificando suas escolhas ou até mesmo atribuindo ao outro a livre decisão da mesma.
Jerry, ao experienciar os conflitos gerados pelas suas escolhas e situações colocadas pelo mundo, poderá escolher, por ser um ser alienado ou um ser de possibilidades. Segundo Romero (2001), a psicopatologia pode ser percebida através da alienação do relacionamento interpessoal, manifestando-se dentro das possibilidades onde pode ocorrer a subordinação ao outro (neuroses), ou o não reconhecimento no outro (psicopatia), ou a exclusão do outro (psicose), ou os relacionamentos puramente parciais observados nas perversões sexuais. Relata ainda que:

A psicopatologia implica a negação, mistificação e alienação das possibilidades essenciais da existência – a liberdade, a responsabilidade, a abertura, a autenticidade, a auto-realização mesma. O psicopatológico é aquilo que degrada e ameaça tanto a vida quanto a existência, pois as duas estão em mútua interdependência (ROMERO, 2001, p. 36).

Schneider (2006a) coloca que para haver a alteração da dinâmica psicológica do ser, não basta dizer a ele que tem que escolher, que poderá ser diferente do que sempre fez, pois isto é difícil para a pessoa, a lógica do raciocínio é clara, porém é preciso intervir no cogito (consciência), no saber de ser, na estrutura que o sujeito formou de si mesmo, experimentando o psicofísico, experimentando a si, as situações e objetos que o afeta, o ambiente onde se encontra, os determinantes antropológicos e sociológicos, superando assim, seu cogito absolutizado, podendo estar em seu contexto antropológico, sendo sujeito de sua história, uma liberdade desalienada.
Completando a fala de Schneider, Romero (2001) nos coloca que reconstruir a história da pessoa é permitir a ela que se familiarize com seu passado, compreendendo a montagem progressiva de sua vida, e a forma como atua nos acontecimentos de sua realidade, o que não quer dizer, reconstruir um passado, por se tratar de uma tarefa difícil ou até mesmo impossível, mas permitir a pessoa que perceba fatos ou pessoas que influenciaram, ou até mesmo determinaram em partes na construção de seu caráter e na sua visão de mundo e ações, compreendendo assim, o que foi vivido ou sofrido, através de um olhar reflexivo e analítico.
Diante o exposto cabe uma reflexão sobre a postura do psicólogo na atuação no ambiente de trabalho. Schneider (2006b) explica que para compreender o cliente no atendimento clínico, é preciso começar a conhecer as dificuldades do mesmo, através do momento atual, a fim de descrever sua gênese, buscando conhecer a personalidade e psicopatologia do paciente, investigando quais as possibilidades que levou o sujeito a ser quem ele é, ou melhor, como construiu a personalidade, apoiada em um projeto de ser, clarificando como complicou-se psicologicamente, apontando o contexto antropológico e sociológico que forneceram condições de sua personalização e psicopatologia. O cliente fornece de forma clara e segura como e onde intervir para alterar o fenômeno, o que possibilitará ao terapeuta permitir ao cliente criar condições que redimensione sua vida e seu projeto de ser, tomando sua história e seu ser em suas mãos, responsabilizando-se por suas escolhas através de uma curar, que transcenda as dificuldades, permitindo a resolução das questões ontológica do cliente através de um novo olhar dentro de novos parâmetros, em que seu projeto e desejo de ser sejam viabilizados, a cada resignificação.

A cura [...] nunca poderia ser, portanto, uma conformação ao que o paciente é, um assumir a sua condição, uma aceitação de si mesmo, um auto-conhecimento, uma adaptação às circunstancias sociais, como pregam muitas outras psicoterapias. Não! A psicoterapia [...] só faz sentido se possibilitar ao paciente o seu estatuto de sujeito, ou seja, enquanto sujeito que tem de escolher em situações concretas, com clareza de seu compromisso ontológico com os outros, com a sociedade. Dessa forma, tem como meta superar a alienação do sujeito (SCHNEIDER, 2006b, p. 109).

Refletindo sobre o pensamento de Schneider, o psicólogo existencialista que atua no ambiente das organizações deverá embasar sua atuação em uma gestão onde permita que o trabalhador possa assumir as responsabilidades de sua escolha no desenvolvimento de suas atividades laborais, compreendendo as consequências de sua ação, possibilitando que se torne dono de sua história, permitindo uma reflexão sobre sua consciência e atuação humana, o que possibilitará o mesmo ser capaz de interferir no seu projeto de ser trabalhador evitando assim, o possível adoecimento.
Segundo Freitas (2005), o psicólogo ao compactuar com a adaptação do indivíduo, escolhe para ele como deverá agir, tentando encaixá-lo em determinadas situações, negando que aceite suas escolhas, sua existência enquanto ser livre, tentando transformá-lo em coisa, objeto.  
No filme é percebido os conflitos enfrentados por Jerry, como a perda do emprego, perda dos clientes, dificuldades financeiras para recomeçar, conflitos no casamento, isolamento por parte daqueles que diziam que o amavam, vivencias paradoxais, bem como influencias sociais e sociológicas enfrentadas nas relações estabelecidas, porém as várias reflexões sobre estes acontecimentos e sua forma de ser no mundo fazem com que Jerry reveja seu projeto evitando o adoecer, vivenciado a possibilidade de redimensionar seu Eu, lançar-se no mundo através de sua inteligibilidade.



CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreender o que o existencialismo sartreano nos propõe enquanto ciência, permite ao psicólogo que atua no contexto organizacional direcionar seus projetos a fim de contribuir com ações que viabilizem a saúde do trabalhador, uma vez que, na sua totalidade, o homem constrói a si mesmo, vivenciando um para-si, realizando escolhas que podem ou não contribuir para o seu adoecimento, onde através do significado que passa a dar aos fatos ocorridos escolhe construir seu projeto de ser, mesmo havendo um mundo posto, no qual tratando-se de uma organização são permeados por leis, normas e padrões a serem seguidos.
Conscientizar o trabalhador de que apresenta possibilidades de fazer diferente do que fizeram dele, através de uma relação de reciprocidade positiva para com os colegas de trabalho e para com a empresa, é permitir que todos sobrevivam frente ao mundo posto, de regras, normas e padrões, o qual permitirá a realização dos projetos de cada um, empresa e trabalhador, evitando o adoecimento que resultará na satisfação e lucratividade.
Através da compreensão por parte da empresa de que é preciso uma parceria com o funcionário, é possível criar espaços onde o trabalhador possa refletir sobre suas ações, suas responsabilidades, e até mesmo através de sua criatividade contribuir para com melhorias, permitindo que veja sentido e significado naquilo que faz, percebendo sua humanidade, seu ser no ato de trabalhar, reduzindo assim a possibilidade de adoecimento mental, o que facilitará também na redução de conflitos organizacionais.
Diante esta postura, o trabalhador compreenderá que é respeitado e valorizado, de que não lhe é roubado seu ser, evitando sua desumanização, o que para Freitas (2009) menciona sobre o constrangimento do outro através do aniquilamento, onde uma pessoa ao perceber que a liberdade e reificação da outra pessoa pode significar uma ameaça, aniquila a liberdade desta outra, e este outro ao permitir que seja objetivado, aniquilado por medo do que sua atitude/resposta possa provocar em quem o aniquila, como, por exemplo, a exclusão, escolhe por não escolher, mantendo os desejos impostos, tomando este sentido para sua vida, ou melhor permitindo a ela que não tenha sentido, deixando de escolher por si, negando sua condição de ser livre, o qual poderemos compreender o processo de alienação e/ou adoecimento.
Freitas (2009) nos confirma que a Psicologia ao trabalhar a favor da saúde do trabalhador, auxiliando na criação de espaços onde possa ser livre para pensar as possibilidades de contribuir com sua força de trabalho e conhecimento, a fim de evitar o adoecimento, permite ao trabalhador transcender entre o mundo interno e externo e suas tensões internas e externas, considerando seus valores, transcendendo assim, o prático-inerte e criando sua história.
Saber equilibrar a saúde física e mental do trabalhador e manter os lucros e produtividade não se trata de uma tarefa simples, é preciso considerar o homem como ser de possibilidades respeitando-o, compreendendo que este ser não é um objeto, mas sim um ser que pode escolher o que desejar ser, contribuindo assim seu saber contribuindo para a sociedade desde que não se sinta ferido ou agredido por um mercado onde é visto como máquina, desvalorizando sua essência, seus princípios éticos e o projeto de ser.

REFERÊNCIAS
CROWE, Cameron. Jerry Maguire: a grande virada. EUA: Columbia Tristar, 1997. Fita VHS

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EXISTENCIALISMO, PSICOLOGIA DO TRABALHO E M A SAÚDE/DOENÇA DO TRABALHADOR (26/06/2011)


UMA VISÃO EXISTENCIALISTA DA RELAÇÃO DA PSICOLOGIA DO TRABALHO COM A SAÚDE/DOENÇA DO TRABALHADOR, A PARTIR DO FILME
JERRY MAGUIRE: UMA GRANDE VIRADA
RESUMO: O tema Saúde do Trabalhador engloba todo um contexto de trabalho, relações de trabalho, relações sociais e relações familiares. Devemos considerar também, a existência do sistema capitalista que influencia na construção da subjetividade e objetividade humana, podendo refletir assim no adoecimento ou não do trabalhador. É preciso lembrar que a organização faz parte de uma sociedade capitalista a qual reproduz valores, em muitos casos, não coerentes com as necessidades e anseios dos trabalhadores, o que muitas vezes não é percebido pelos mesmos de forma reflexiva, podendo gerar em alguns casos o adoecimento do trabalhador, impossibilitando o mesmo transcender seu projeto de atuação profissional frente às dificuldades encontradas sejam elas valores, necessidades, anseios, estratégias de trabalho ou de relações profissionais. O presente artigo justifica-se pela reflexão sobre as possibilidades que o trabalhador pode vislumbrar frente ao mundo do trabalho ao perceber seu potencial e seu projeto de atuação profissional e a partir daí, lançar-se no mundo construindo sua história através de escolhas coerentes com seu projeto de atuação profissional. Objetivou-se com este capítulo, oferecer uma nova possibilidade de leitura do tema “Saúde do trabalhador” através da visão fenomenológica existencial sartriana. Utilizando-se da análise do filme “Jerry Maguire – A grande virada” (CAMERON CROWE, 1997), foi possível escrever este artigo, embasando-se em textos de origem existencial. Utilizou-se do método progressivo-regressivo satriano para compreensão das escolhas feitas pelo protagonista do filme, Jerry Maguire. A análise do filme mostrou que a personalidade do sujeito é tecida nas relações sociais, os quais orientam para definição do ser, da identidade, o que só é possível através das relações estabelecidas ao longo da vida, o qual algum destes fatos ao afetar a personalidade gera uma complicação psicológica que leva o sujeito a experienciar a contradição de ser, podendo levar a possível insegurança na realização do projeto de ser, ou ainda, a inviabilização do desejo de ser, gerando então o adoecimento.
Palavras-chave: Saúde do trabalhador. Existencialismo. Psicologia do Trabalho.
Francielle Morelli[1]
Ronaldo Antonio Verrillo[2]
 Sylvia Mara Pires de Freitas[3]


[1] Psicóloga. Discente do curso de Pós Graduação em Psicologia Fenomenológica Existencial da Universidade Paranaense-UNIPAR.
[2] Psicólogo. Discente do curso de Pós Graduação em Psicologia Fenomenológica Existencial da Universidade Paranaense-UNIPAR.
[3] Psicóloga. Mestre em Psicologia Social e da Personalidade (PUC/RS). Especialista em Psicologia do Trabalho pelo Centro Universitário Celso Lisboa (CEUCEL/RJ), Formação em Psicologia Clínica na abordagem existencialista (NPV/RJ). Bacharel em Psicologia pelo CEUCEL/RJ. Docente dos cursos de Psicologia da Universidade Paranaense (UNIPAR), Unidade Sede, Umuarama/Pr) e da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá/Pr. Coordenadora, docente e orientadora do curso de Especialização em Psicologia Fenomenológico-existencial da UNIPAR.